Para elucidar o nosso interesse nas coisas espirituais, vejamos o que de mais interessante sucedeu com Joana, bem como o fenômeno mais admirável que com ela ocorreu.
Pelas ruas de Paris perambulava uma mulher de certa presença, que viera de antigos mandatários, a quem o destino fez cair na mais dramática situação, como resgate cármico, para que pudesse destilar pelos canais da dor, o fel da consciência, acomodado por atos que invertem o ser humano, levando-o ao reino da bestialidade, confundindo-o com os próprios animais.
Essa criatura tomou-se conhecida como a Louca de Paris, e era comum os estudantes rodearem-na em certos momentos, quando parecia que cessava a loucura, e a lucidez causava admiração nos que a ouviam.
Roupas imundas, cabelos encrespados, olhos esgazeados, pés no chão; saíam de seus lábios, quando atacada, palavrões que o próprio ar se negava a conduzir aos ouvidos humanos. Na sua lucidez, asserenavam-se as suas feições, brilhavam os olhos e a filosofia fluía, articulada por palavras que os próprios filhos de Sócrates teriam dificuldade de assimilar.
E quando algum caridoso tentava ampará-la, a fúria voltava de maneira a não dar mais lugar ao altruísmo do ouvinte.
Foi piorando muito, e já era incômoda sua presença nas mas da Cidade Luz. Certa vez, por maltratar alguns inquisidores na sua fúria, expediu-se uma ordem para encarcerá-la na masmorra, onde se juntavam muitos condenados à forca e às fogueiras. Joana D’Arc, nesta época, estava presa em frente à cela da louca. Certa feita, a Virgem de Domremy é retirada para mais alguns dos intermináveis interrogatórios. A mulher, em um dos momentos de consciência, ao ver aquele quadro de desumanidade, enfureceu-se avançando nas grades, e explodindo em nomes de baixo calão, querendo defender a guerreira francesa.
Os soldados, por ordem dos Inquisidores, abriram as grades da louca e empurraram Joana para dentro, dizendo:
“Pede a ela que te cure, pois não cansa de dizer que fala com os Anjos!” A mulher enfurecida acalmou-se, ajoelhou-se nos pés da heroína e pediu alívio, como mãe relegada aos entulhos da própria natureza, chorando como criança. Joana passou os olhos como raios em tomo da mulher e viu vultos negros que avançavam como vampiros, sugando tudo que fosse divino, nos divinos centros de força daquela criatura.
Ordenou-lhes, então, em nome do Cristo e dos Santos que sua memória alcançou na hora, falando com energia. Acariciou a louca como se esta fosse uma criança em braços de mãe extremosa.
Beijou a fronte da companheira de angústias e dela se despediu, caminhando para o dever frente aos carrascos do poder temporal. A mulher caiu em profundo êxtase, como se Morfeu a levasse para o paraíso.
Os soldados caíram em gargalhadas, tirando Joana, aos empurrões, da cela que acolhia a mulher marcada pelo destino.
Malgrado a zombaria deles, a louca nunca mais sofreu tais acessos, curada pela presença da Pastora de Domremy, e daí a alguns dias foi colocada em liberdade. Voltou a andar nas mas, calada e triste, procurando sua protetora. Quando falava, era somente o necessário, e nessa altura, sua linguagem causava admiração nos que a ouviam, que logo perguntavam: – “Essa não é a louca? Ela foi curada? Por quem?” E alguém respondia do meio da turba: – “Foi Joana D’Arc quem expulsou os demônios que estavam com ela”.
A melancolia invadira seu ser. Andava sem parar, mansa e lúcida. Queria encontrar sua protetora e, como gratidão, oferecer-lhe a vida, pois não tinha outro meio de pagar-lhe o que fizera por ela. Descuidada, é colhida de sopetão por uma carruagem que dobrava a esquina e jogada de encontro a outra que vinha em direção oposta. A mulher morreu sem alcançar seu desejo de, pelo menos, servir de escrava fiel à sua benfeitora.
No entanto, como ninguém morre – apenas passa de uma dimensão para outra – ela continuou no mundo dos Espíritos procurando Joana D’Arc. Em uma manhã, viu um ajuntamento de gente em Rouen, uma fogueira lastreando suas línguas de fogo e uma mulher suspensa, olhos fitos nos céus e algumas lágrimas escorrendo em suas faces.
A turba inconsciente, em gritos estentóricos, reclamava: “Queimem a feiticeira!… Queimem a baixa!” A ex-louca, ao deparar com aquele quadro, quis avançar, fazendo grande esforço para salvar aquele Anjo; no entanto, algo a prendia, como chumbo atado aos seus pés.
Em prantos, suplicou a Deus amparo ou forças para que pudesse mostrar sua gratidão a quem lhe devolvera a consciência e a própria vida. Uma luz fulgurante desceu dos céus em sua direção, libertando-a e esplendendo sobre Joana como jato luminoso.
Uma voz ressoou em sua mente inquieta: “Vá, seja grata àquele coração que pulsa para o Bem da humanidade”.
Quando a mulher tomou a olhar a mártir já sumida nas largas labaredas, viu seu coração como um sol e abraçando-o, beijou com todo amor o centro de vida de Joana D’Arc, e se entregou ao fogo inquisitorial como se doasse a vida para salvar o coração daquela mulher, que se propôs a salvar a França, que plantou a esperança em todos os que sofriam nas masmorras, preparando muitos com o seu exemplo de dignidade para o sacrifício, em todos os atos de fé, da podridão inquisitorial.
Quando os carrascos foram recolher as cinzas da maior das hereges da França, encontraram o seu coração intacto; parecia que fora extraído do peito da Princesa de Domremy, a dizer: “O corpo é da Terra e nela fica; entretanto, o coração pertence ao céu, por ser ele a forma do Amor que herdamos de Deus pela intervenção de Jesus Cristo”.
Os carrascos inconscientes, assustados com o achado, correram espavoridos para comunicar o acontecimento aos inquisidores, que festejavam mais uma vitória na teórica limpeza do sarro da Pátria, e principalmente, do seio da Igreja.
O coração de Joana, que não se queimou, contrariando as leis da Física, foi ponto alto nas reuniões dos chefes inquisitoriais.
Joana, quando atada ao lenho, poderia ter saído do corpo, mas assim não quis; preferiu, enquanto a queimavam, entrar em prece, pedindo a Deus por seus opositores. Terminada a rogativa, desprendeu-se do fardo físico e viu sua protegida enroscada nas labaredas, protegendo seu coração.
Estendeu os braços e recolheu-a no regaço de Amor, e com um beijo, colocou-a refratária ao sofrimento que a torturava, causado pelas chamas, e, ao lado de um cortejo de estrelas volantes, demandou ao infinito.
Livro: Francisco de Assis – Joao Nunes Maia, pelo espirito Miramez
Capitulo (Uma Cidade diferente) – Página 58.